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TRABALHO DOS NOMES

Há uma gravura do artista uruguaio Luis Camnitzer, na qual se lê três letras impressas em caixa alta formando uma palavra: CHE. Três letras compondo um enunciado curto, que, por sua vez, se torna um indicador e um chamariz absoluto para o olhar do espectador/leitor. Nessa gravura, a palavra única posta ao centro do espaço de impressão não deixa brechas para divagações sobre o sentido que não o seu, ou seja, ela figura o nome do revolucionário argentino assassinado pouco antes do artista realizar sua obra/homenagem. Como Camnitzer, outros autores, com mais ou menos inclinação militante, e não apenas nas artes visuais, fizeram e fazem dos nomes próprios ou comuns, modos de produzir discursos sobre o mundo e sobre acontecimentos do mundo. É o que ocorre, por exemplo, numa canção de Nazaré Pereira, gravada em disco no ano de 1979, em que a cantora evoca nomes amazônicos. Ela canta: “Cabocla linda lá do Rio Jarí / fosse descendo pelo Amazonas / o sol brilhou pra mim no Xapuri”. Outro autor, Tom Jobim, na canção intitulada Brasil Nativo, canta: “Brasil, sei lá / eu não vi na terra inteira / o que nessa terra dá / e o que é que dá? / Gabiroba, Gameleira, / Guariroba, Gravatá / Tambatajá, Ouricuri e Juremá / Xingu, Jari, Madeira e Juruá / do Boto cor-de-rosa ao Boitatá.”
 

O que cada uma destas obras de arte citadas exemplifica é um trabalho de interpelação que se torna evocação e ou constituição memorialística das coisas do mundo. O chamamento é um agenciamento da linguagem.


Sobre a agência dos nomes em suas variações discursivas/operativas, somos informados na filosofia da linguagem, na antropologia, na linguística e, mais de uma vez, nas artes. Pelas teorias da linguagem sabemos que os sentidos dos atos de nomear podem se dar por meio das palavras que “denotam com precisão objetos individuais”, palavras que “garantem a priori uma referência-a-algo, ou seja, que possuem a denotação como requisito lógico”. Não obstante, na filosofia da linguagem wittgensteiniana, os nomes são entendidos como entidades ontológicas não fixas, mas determinadas por práticas sociais de grupo. Para Wittgenstein, os significados dos nomes e seus usos pelos falantes de uma língua surgem sempre do “entrelaçamento entre cultura, visão de mundo e linguagem”.


Junto destas perspectivas filosóficas há também aquelas trazidas ao conhecimento pela antropologia, por exemplo, quando Tim Ingold aponta a possibilidade de contestar modos de conhecimento verticalmente integrados, que formam redes fixas nas quais os nomes próprios pertencem apenas a sujeitos individuais e os nomes comuns servem como classificação das coisas e à designação de tudo que é não-humano. Como antítese à doxa das ciências naturais “modernas”, Ingold defende, desde o contato com sociedades não eurocentradas e não coloniais-colonizadas, a possibilidade de pensarmos os nomes como modos de compreender/interagir com “a superfície da Terra, não como já disposta e apenas aguardando ser descoberta e ocupada, mas sim desdobrando-se continuamente no curso da própria vida, através dos movimentos de pessoas e animais, vento e correntes, corpos celestes e assim por diante”.


É inspirado pelas múltiplas relações com outras formas de existência que o antropólogo descreve uma espécie de transformação radical da gramática e dos sentidos dos nomes, dizendo que ao diminuir ao máximo “o hiato entre pessoas e lugares, de modo a estarem intrinsecamente vinculados, em vez de extremamente ligados”, é possível compreender que “nada existe em si e por si, mas é apenas a mais ou menos efêmera corporificação da atividade-em-relação-aos-outros”. Para Ingold, a partir desse novo modelo de pensamento, seria possível superar “o projeto de classificação que agrupa e divide as coisas de acordo com atributos fixos”, eliminar a hierarquia entre “os substantivos comuns e os nomes próprios”, e chegar ao estado de entendimento no qual, “as pessoas se tornam seus movimentos, […] e os lugares não são tanto localidades para serem conectados quanto formações que surgem no processo de movimento, como redemoinhos em uma corrente de rio. Em suma, nesse mundo (possível) nomes não são substantivos, mas verbos: cada um descreve um acontecimento”.


Essa semântica múltipla defendida na antropologia praticada por Tim Ingold é útil para pensar os sentidos dos nomes enunciados nas canções de Nazareth Pereira e Tom Jobim, assim como as teorias da filosofia da linguagem podem auxiliar no entendimento da significação primeira do nome CHE estampado como palavra/ação na gravura de Luis Camnitzer. E é, portanto, a partir destas colocações sobre as diversas formas de leitura e abordagens disciplinares sobre o uso e sentido do nomear nos discursos, que podemos pensar os nomes como índices do mundo e como objetos que podem ser tomados de empréstimo para a constituição de descrições da realidade e como matéria para a abertura de veredas que levem à descoberta de potências discursivas e imaginantes.

 

***


Na série de cartazes intitulada “O trabalho dos Nomes”, são estruturantes as ideias tomadas às teorias da filosofia da linguagem, da antropologia e outras, bem como uma premissa indicada por Audre Lorde, ao dizer que “é da poesia que nos valemos para nomear o que ainda não tem nome, e que só então pode ser pensado”. Parto desses referenciais para entender e constituir um arquivo de palavras/nomes tomados de canções brasileiras, em que são enunciadas as formas de existências mais diversas. E é com este arquivo de palavras que elaboro um dispositivo de representação e imaginação. Nessas obras os nomes referem formas de vida e de existências efetivas, e ao serem mostrados, compondo um discurso, podem ser percebidos como formas de descrição do mundo e como indicadores da concretude desse mesmo mundo.


Os nomes que tomo do arquivo aparecem como notas de estudo, mas também como indicadores para uma ação futura, ou seja, os nomes são índices a serem lidos/entendidos como objetos para a rememoração e tomada de posição do leitor. Nos cartazes também são grafadas quatro sentenças — citações — tomadas de empréstimo a quatro autores. Compostos em formas espirais, esses outros textos são como guias de leitura/significação para os diferentes conjuntos de nomes humanos e não-humanos, nomes de seres, de coisas.


Ao fim, meu trabalho se destina a fazer ler e conhecer nomes, pretende fazer cada uma dessas palavras compreensíveis como índices de existências singulares e, ao mesmo tempo, sutis monumentos.

 

 

REFERÊNCIAS


1. VIRNO, Paolo. Palabras com palavras: poderes y límites del lenguaje. p. 60.
2. Idem. p. 63.
3. GLOCK, Hans Johann. Dicionário Wittgenstein. p. 173.
4. INGOLD, Tim. Estar Vivo. p. 247.
5. INGOLD, Tim. Estar Vivo. p. 247
6. Idem.
7. Ibidem.
8. Ibid.
9. Ibid.
10. LORDE, Audre. Irmã outsider. p. 5.

 

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