UM TEXTO DO OCTAVIO PAZ.
Instalação. Fita adesiva, papelão, parafusos, acetato, parafusos, madeira, papel alumínio, led, cabos eletricos, fontes chaveadas.
700cm X 20cm; 2018.
IDEIAS DE NOVO
É preciso dizer que, como em toda luta de longa duração, as ideias contam enormemente. (Achille Mbembe)
1 – Vou recorrer brevemente a uma descrição para demonstrar de maneira simplificada a forma geral e a consequente função simbólica do que quero chamar a partir de agora de “noção de consciência histórica”, ela é a condição estruturante de toda a estratégia discursiva contida na série de proposições que são publicadas no contexto da exposição “Ideias de Novo”. Quero propor uma maneira de representar, de dar sentido ao que denomino de percepção “consciente” sobre uma série de eventos políticos, econômicos e sociais. Propor que todos eles sejam organizados por meio de uma alegoria, e que esta alegoria possa ser materializada, por exemplo, por uma imagem pobre, precária. Minha intenção passa por descrever a alegoria com a forma de um redemoinho, no qual em seu centro as coisas vão se acumulando e depois se perdem do olhar, talvez retornem noutro ponto. Um último aspecto que deve ser marcado consiste em evidenciar que a superfície do redemoinho é turva, agitada – detalhe que permite que a imagem sirva melhor ao enunciado.
2 – A breve descrição realizada acima constitui, portanto, a forma totalizante de um símbolo em que o ponto central [c1] desse redemoinho-alegoria deve ser pensado a partir da sua função significante. Seu centro assume para o entendimento o lugar representativo do que talvez não conhecemos ainda, tomando sempre a posição daquilo que está por vir. Enquanto parte da figura, o ponto central, que é para onde tudo se direciona, está reservado às coisas do futuro, que são mais ou menos intuídas. Para lá correm todas as coisas que são atuais, todos os eventos no tempo presente, mas também os do tempo passado. Cada porção da sequência espiralada que dá forma à alegoria do redemoinho é constituída por uma variação de tempos, portanto, o atual se torna passado, mas não se perde por completo no fluxo que se dirige para o devir. Todos os eventos marcados no tempo estariam, no entendimento simbólico da imagem, contidos em linhas concêntricas, em braços distintos das espirais. Eles se superpõem numa série infinita enquanto se dirigem para um futuro incerto.
3 – Desse caos de símbolos vai emergir o que chamo de noção de consciência histórica, que serve para organizar especificamente um recorte das narrativas e dos registros dos eventos de ordem cultural, política e econômica ocorridos em contexto muito específico, ou seja, o espaço e tempo que dão margens à história recente da América Latina, com destaque especial para a história contemporânea brasileira – que está, se preservadas suas diferenças, inserida neste grande conjunto de eventos. É a esta seção muito particular de acontecimentos que penso ser justa a representação alegórica na forma do redemoinho, e julgo que é providencial reforçar a ideia do acontecimento que é o turvamento da superfície atribuído ao símbolo – um aspecto que precisa ser explanado adiante.
Quando me permito fazer uma asserção de tom quase pretencioso acerca do que entendo por nossa história contemporânea, lançando mão de um modo de representação ainda tomado de certa ordem subjetiva, é porque me posiciono diante desta mesma história numa relação que é dicotômica. Ao mesmo tempo em que tomo uma posição intencionalmente analítica e relativamente distanciada dos fatos mais concretos que marcam a historiografia recente no contexto latinoamericano, apresento também uma série de intervenções que denomino como comentários, os quais são causados por uma espécie de urgência de sentido ideológico particular e sensível. Minha posição crítica consiste em dizer algo acerca de uma série de eventos mais ou menos contemporâneos tomando a história da própria tradição da teoria crítica, do pensamento criticista de ordem regional e universal. Nas seis proposições que compõem a mostra intitulada “Ideias de Novo”, o tom discursivo marcado é posto sobre uma série de procedimentos, ou melhor, sobre um método rigoroso de produção, tanto artística quanto teórica, sempre desdobrado num jogo constante entre esses dois domínios.
4 – Vejamos, por exemplo, como as obras mostradas aqui exemplificam tanto a noção primeira de retorno das coisas do passado na forma do mais atual, como também deixam perceber o que entendo por uma urgência em desvelar que aquilo que está por vir em nossa realidade parece ser sempre tudo que já se conhece, e tudo que é atual parece passado, e ainda, que todo evento percebido não permite mais que intuamos aquilo que nos reserva o tempo a vir.
5 – Um texto da Marta Traba; é o título da obra que surge do ato de recortar e editar parte de um parágrafo que compõe o livro Duas décadas vulneráveis na arte da América latina 1950-1970; o escrito que é tomado de empréstimo da crítica de arte colombiana Marta Traba (1930-1983) serve como ponto de partida para a exemplificação do uso da linguagem como elemento capaz de realizar o deslocamento dos significados entre os tempos, permitindo também que eu não precise me deter desde o primeiro momento no trabalho de localização e contextualização do referente, ou seja, evito informar detalhes da origem do texto emprestado. Vale falar aqui que ele foi publicado em meados da década de 1970. No Brasil, teve sua primeira edição em 1978. Na obra exposta, nenhuma dessas informações são fornecidas, e o título da proposição serve apenas como um marcador simples que define um procedimento de citação autoral. Esse ato de não localizar temporalmente as sentenças do escrito da Marta Traba torna-se uma camada estrutural a mais que constrói o sentido da proposição. A negação de qualquer coordenada temporal e mesmo espacial de maneira direta desloca o sentido das sentenças e, para o espectador, cada uma daquelas palavras talvez consiga dizer algo sobre eventos mais atuais.
6 – Todas as operações conceituais que estruturam as proposições apresentadas em Ideias de Novo permitem organizar o pensamento em torno de uma noção de anacronismo. O uso invariável da linguagem serve a este propósito. Em toda a exposição circula uma ideia que está, por sua vez, relacionada à percepção de que os acontecimentos atuais relativos às práticas políticas, econômicas, sociais etc. parecem reeditar ou reaparecer com sua face mais arcaica e negativa. Pensar no retorno infinito do mesmo, servindo-me de teorias, sentenças, textos emprestados de diversos tempos e autores constitui o que chamei antes por método de trabalho, que é sempre movido por operações conceituais sobre as ideias dos autores. A opção pela citação, pelo recorte e edição dos escritos, como por exemplo o que é realizado com o texto da Marta Traba, serve para mostrar o senso de anacronia, mas também permite evitar qualquer posicionamento de ordem melancólica com relação aos elementos tomados ao passado. Talvez possa dizer que há demonstrado nas proposições – na relação que elas tecem com a história, com os eventos políticos, sociais e econômicos, enquanto fatos dignos de compor uma narrativa historiográfica–, uma opção correspondente ao que Agambe designa como aquilo que é o contemporâneo. Nas proposições mostradas na galeria, aparece a minha opção que consiste em acordo com o que propõe o filósofo italiano, em odiar meu tempo mas ter a consciência clara de pertencimento a ele, (pertencimento) ao atual.
7 – Estou em concordância com o texto “O que é o contemporâneo” de Giorgio Agamben e também cito Nietzsche, o intempestivo, aquele que tem inevitavelmente pretensão à atualidade, sem qualquer sentimento paralizante de melancolia relativo ao passado. Agamben vai continuar dizendo que o contemporâneo, de certa forma “[...] é aquele que pertence deveras ao seu tempo, [...] é alguém que não coincide perfeitamente com ele nem se adapta às suas exigências e é por isso, nesse sentido, inactual; mas, precisamente por isso, precisamente através do seu distanciamento e do seu anacronismo, é capaz de perceber e captar o seu tempo.”
A sentença acima permite exemplificar a noção de uma consciência história, conforme busquei desdobrar nas seis proposições exibidas em Ideias de Novo. Não é apenas com o Texto da Marta Traba que proponho organizar a demonstração do retorno-permanência anacrônico das relações de exercício do poder político, como por exemplo o oligárquico, ou a manutenção e intensificação da repressão exercida em conjunto com os processos de desenvolvimento econômico capitalista, ou na manutenção das estruturas precárias e envelhecidas da política e da economia, conforme elas são há muito tempo e continuam sendo dadas na América Latina. Com a edição da escrita e a construção de um dispositivo de exibição artística que parte das ideias da Marta Traba, desloco o sentido do seu texto permitindo que as palavras ali digam muito mais sobre o tempo presente. É nesta relação de atemporalidade que percebo a correspondência com a ideia do ser intempestivo diante da história, a própria formação da noção de consciência histórica que venho defendendo.
8 – Toda operação crítica realizada com meu trabalho surge pelas estratégias que chamei anteriormente de comentários carregados desta mesma noção sensível do retorno da história. Os comentários podem ser percebidos, por exemplo, não só na apresentação sem identificação do texto referente, mas também nas marcações que realizo nas palavras, feudais, o pré, de pré-capitalistas e em toda a expressão raquitismo do mercado interno. Essas marcações censuram o sentido das palavras, servem para indicar um senso de distanciamento ou perda que, por sua vez, permite criar uma correlação potente dos textos com os fatos mais concretos da realidade. São marcações colocadas a partir da minha percepção acerca das mudanças dos significados das palavras e ajudam a atentar para sua referencialidade com eventos concretos na atualidade.
A partir dessa nova condição, o próprio sentido daquelas sentenças deve ser reiterpretado ou mesmo ser considerado como incoerente, claro, sempre que comparadas ao uso delas pela autora no seu lugar e momento específicos. Mais uma vez pode se falar que a noção de um pertencimento incomodado ao tempo presente, que diz do intempestivo, é relevante para a escolha dos trechos de textos tomados por referência e para as palavras marcadas, é uma condição que aparece bem, por exemplo, noutra obra exibida, que tem um título longo: Uma proposição partindo de um texto editado do Florestan Fernandes e o nome de um livro do Lenin;
9 – Articulei nessa instalação a demonstração de uma ideia que aparece em dois tempos. Emprestei à leitura feita por Florestan Fernandes do texto leninista um breve trecho, que editei, recortando e em certos pontos alterando algumas das palavras. A intenção passa por construir com ela uma sentença capaz de encerrar um sentido de dúvida. As dezoito pinturas-texto que mostram a pergunta: Que fazer?; que são por sua vez a exemplificação do próprio título do livro do Lenin, completam o sentido do escrito do Florestan Fernandes. O texto do sociólogo parte da leitura que ele propôs sobre a realidade brasileira no final da década de 1960, dialetizando o texto do revolucionário russo e buscando fazer aquelas teses concordarem com a análise da crise política trazida pelo golpe civil-militar de 1964. O procedimento conceitual que estrutura este trabalho consiste em apresentar um comentário referente à sentença longa do Florestan Fernandes, para isso me sirvo de uma pergunta simples: Que fazer? Alternando o uso da sentença para fazê-la combinar com a incerteza sobre o que seria agir politicamente hoje. Mostro que o texto que não fala mais do tempo da escrita pelo autor, mas remete ao tempo da sua reapresentação, ao momento em que é gravado em pintura diretamente na parede. A operação que realizo é uma tentativa de organizar, em termos, diga-se benjaminianos, o pessimismo diante do retorno crísico do passado no nosso tempo atual.
10 – Outras três proposições são organizadas em torno da estratégia de análise e comentário. A pequena pintura intitulada “Um texto do Antonio Candido e marcadores linguísticos” é a apresentação de um breve recorte dos escritos do crítico literário brasileiro fazendo referência à produção literária latino-americana em condições de subdesenvolvimento econômico. O que proponho com esta obra é indicar certa cultura ou noção de precariedade social e econômica brasileira, reafirmando a descrença generalizada e de senso comum sobre o futuro grandioso sempre prometido – hoje, somente a título, também, de comentário, parece, para além de todos os esforços retóricos do status quo, quase ninguém espera mais por aquela promessa de futuro promissor[c2] [c3] . Os marcadores linguísticos (chaves), por sua vez, servem para indicar a repetição infinita da noção de consciência e de atraso que o texto mostra, consciência que pode ser atualizada sem qualquer alteração quando trazida ao nosso momento. É assim também que outras duas proposições desdobram procedimentos semelhantes, ou seja, o comentário serve para marcar o retorno do passado indesejado com formas possivelmente mais novas.
Também a instalação nominada: Um telegrama e o nome de um livro do Mário Pedrosa e a videoinstalação que intitulei: Comentário com um recorte de uma matéria recente de um jornal de economia e um texto do Brecht organizam modos de falar de temas relacionados à economia nacional. O telegrama, ou a imagem dele, é superposto por um letreiro luminoso com a expressão: a opção imperialista; que por sua vez é o título de um livro do Mário Pedrosa. Nesse livro, o crítico tratava justamente das relações de dominação imperialistas entre nações desenvolvidas e o Brasil. O texto luminoso é mais um comentário sobre o retorno das conhecidas estratégias de dominação econômica sobre nós, desta vez, como deixa ver o texto colado à parede, a estratégia é exercida pelo governo britânico na figura de seu ministro da energia, que tem o intuito de conquistar o direito de exploração do petróleo brasileiro para empresas britânicas. O telegrama que é impresso em grande formato e colado diretamente na parede da galeria serve como um índice com função informativa, trata do passado e do presente, que giram sempre juntos no tempo. Assim também o texto do Brecht, que compõe a videoinstalação já citada, entra numa espécie de jogo com outro índice informativo, mas esse segundo índice aparece como um signo do presente, uma notícia de jornal que trata da crise econômica mais atual.
11 – Por fim é preciso retornar à alegoria do redemoinho, tanto para concluir este texto como para discorrer brevemente sobre a última proposição que é mostrada aqui. Voltando à ideia de turvamento da superfície da figura simbólica, porque este detalhe dialoga bem com o texto tomado de empréstimo do livro El Laberinto de la Soledad, do Octavio Paz. A instalação “minimalista” consiste num recorte preciso de uma frase, a última frase do livro do autor mexicano. Redigido ainda na década de 1950, o texto do Octavio Paz traz consigo uma espécie de previsão, que Silviano Santiago chama de “otimista e hiperbólica”, e que pode ser lida em dois sentidos. Gosto de pensar nela como uma premonição para a atualidade, deixando de lado o tempo para o qual ela foi endereçada. Julgo que dizer ser contemporâneo de todos os homens serve para indicar a igualdade de muitos na crise civilizatória do presente, mais do que a expectativa pelo futuro promissor que se esperava nos anos finais da década de 1950, que era o tempo de uma América Latina que sonhava desfrutar dos ganhos do estado de bem-estar social que se instalava nos países do norte desenvolvido.
Portanto, essa impossibilidade da crença positiva, que o momento atual teima em nos apresentar, é aquilo que corresponde bem à representação do turvamento da superfície alegórica do redemoinho. Percebendo as coisas nestes termos, cabe por fim a menção a uma sentença do economista britânico William Davies que, num texto relativamente recente publicado na New Left Review, intitulado “O novo neoliberalismo”, propõe reconhecermos que “a famosa observação feita por Gramsci nos Cadernos do cárcere [...] de que – a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não nasceu – bem poderia ter descrito os anos que antecederam a década de 1970, antes da escensão do neoliberalismo. (Mas que) hoje, no entanto, o velho não está morrendo, senão que o estão fazendo reviver”. O dito do economista carregado de pessimismo acaba por combinar bem com um certo espírito da época, que de alguma maneira é mostrado em todas as proposições trazidas em Ideias de Novo. Talvez, por isso também, para fazer frente ao pessimismo muito marcado, valha retomar a citação que abre este escrito, a epígrafe composta com o texto do Achille Mbembe, filósofo camaronês, que falando do e sobre o sul global defende a necessidade, na crise que enfrentamos, da permanência e defesa das ideias do passado e do presente com vistas ao futuro. Precisamos, portanto, das ideias do novo. Ideias que fundam na linguagem, na atemporalidade dos signos da escrita, uma noção de eventos históricos e a possibilidade de dialética positiva de tais eventos com o tempo presente. Minha intenção, para além de organizar todo o pessimismo, passa por retomar as referências boas com um senso de urgência discursiva para minhas proposições de arte.
Texto publicado no catálogo da exposição individual realizada na Galeria do Centro Cultural BDMG.
G.Costa. 2018